quarta-feira, 29 de outubro de 2008

mauro fernando - sobre homem cavalo & sociedade anônima

A OPRESSÃO NOSSA DE CADA DIA
Por Mauro Fernando


Atualmente soa inadequado falar em vanguarda – como expressionismo e surrealismo, que se espalharam pela Europa, ganharam o planeta e mudaram a face do século XX – para designar o que surge de inovador no panorama artístico. Mas pode-se identificar no teatro paulista companhias que apontam novas perspectivas para as artes cênicas ao se relacionar com o espaço cênico de uma maneira diferente da usual.

O Teatro da Vertigem (O Paraíso Perdido, O Livro de Jó, Apocalipse 1,11 e BR-3), a Cia. São Jorge de Variedades (As Bastianas) e a Cia. Triptal (Rumo a Cardiff) são exemplos de grupos que investigam, com êxito, possibilidades fora da caixa cênica tradicional. Com Homem Cavalo & Sociedade Anônima, em cartaz no Arsenal da Esperança (casa que abriga homens em situação de falta de casa, de família, de trabalho), a Cia. Estável se coloca nesse conjunto.

Como se precisasse reverberar que a esquerda está viva, ao contrário do que apregoam os entusiastas do neoliberalismo, a montagem se utiliza de princípios do teatro épico – fragmentação do texto em tom de fábula, solos narrativos – a fim de abordar a exploração do homem pelo homem. Sim, o bom teatro também é uma manifestação política, não apenas uma proposta estética.

As cenas se sucedem em três pontos do Arsenal. Um painel com diversos logotipos sugere a redução do ser humano a mercadoria. O texto brinca com típicos sonhos de consumo. A relação do Sr. Patrão com seu empregado e as cenas dos garis e da classe média (exposta em sua frivolidade e alienação) indicam os vícios a que se entrega uma sociedade guiada por valores individualistas e questionáveis. Além disso, há os significados ocultos de expressões como Cidade Limpa (livre da miséria não por justiça social, mas pela força do Estado autoritário) e Sociedade Anônima (aquela em que a maioria não tem voz).

A diretora Andressa Ferrarezi revela rara coerência na organização da matéria-prima da montagem, colhida pela companhia junto aos desabrigados do Arsenal – a Cia. Estável, dentro do Projeto Vagar não É Preciso, investigou por dois anos a precária situação social dos que passam pela casa de abrigo. Os depoimentos de desabrigados, colhidos após um ensaio e inseridos no espetáculo, evidenciam a linha de pesquisa da companhia e jogam luz sobre o pensamento dos artistas que a compõem.

O elenco (Daniela Giampietro, Maria Carolina Dressler,Nei Gomes, Osvaldo Hortencio, Osvaldo Pinheiro e Sandra Santana) demonstra pleno conhecimento técnico. As cenas cômicas da Mulher de Lata e do Bêbado, em especial, suscitam comentários dos homens acolhidos pelo Arsenal e comprovam a pertinência do trabalho, realizado em consonância com eles. O espaço cênico torna-se, então, agente do espetáculo – não se presta à condição de mero ornamento.

fonte: http://rotunda.zip.net

terça-feira, 28 de outubro de 2008

debates sobre HC & SA

Novo espetáculo da Cia. Estável de Teatro que se apresenta neste final de semana e no próximo (1, 2 ,8 e 9/11), seguido de debate com alguns convidados e o público que se interessar pelas questões que a peça propõe.


Arsenal da Esperança - Rua Dr. Almeida Lima, 900 – Brás (próximo a estação Bresser-Mooca do Metrô).

Informações - (11) 8121-0870. Capacidade - 50 lugares.

Reservas: (11) 8249-8558 / (11) 8708-9563.

NESTE FIM DE SEMANA:

DIA 01/11 DEBATE COM ALEXANDRE MATE, MARCO ANTÔNIO RODRIGUES E INÁ CAMARGO

Alexandre Mate
Nasceu em São Paulo e realizou seu mestrado em Teatro pelo Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo, doutorado em História, no campus de Assis da Universidade Estadual Paulista, professor de História do Teatro e outras disciplinas, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de São Paulo desde 1997. Leciona História do Teatro Brasileiro no Teatro-Escola Célia Helena, desde 1993 e na Escola Livre de Teatro de Santo André, desde 2004. Há longos anos desenvolve pesquisa de manifestações do teatro paulista.

Iná Camargo Costa
Graduação em Bacharel Filosofia pela Universidade de São Paulo (1979), mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1988) e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1993). Atua principalmente nos seguintes temas: teatro épico, dramaturgia nacional.

Marco Antônio Rodrigues
Diretor, artista identificado com um teatro de cunho popular e brechtiano, um dos fundadores do grupo Folias d'Arte e do teatro Galpão do Folias, se formou em psicologia em Santos, onde inicia no teatro amador, sua estréia profissional se deu em São Paulo.


DIA 02/11 DEBATE COM EDNALDO FREIRE, MARÍLIA CARBONARI E CÉSAR VIEIRA.

Ednaldo Freire
Colaborador e diretor da Fraternal Cia. de Artes e Malas-Artes, cia. que tem um forte trabalho e pesquisa no estudo da tradição cômica; no seu trabalho apresenta uma inquietação no infinito leque das opções estéticas contemporâneas e muito se mostra estilisticamente pela verve do cômico e pela nitidez épica.

Marília Carbonari
Integrante da Cia. de Teatro Fábrica São Paulo, defendeu a tese “Teatro épico na América Latina: estudo comparativo da dramaturgia das peças \'Preguntas inutiles\', de Enrique Buenaventura( TEC-Colômbia) , e \'O nome do sujeito\', de Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano (Cia do Latão - Brasil)”, colaboradora da Roda do Fomento ao teatro para a cidade de São Paulo e de outros importantes movimentos de cunho sócio político e cultural.

César Vieira
Nasceu em Jundiaí/SP, se formou em Direito pela PUC de São Paulo, em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e cursou Dramaturgia na Escola de Arte Dramática. Foi presidente estudantil do Colégio Bandeirantes, dos Centros Acadêmicos da PUC e Cásper e da UNE (1958). A militância no teatro foi sempre uma constante, acentuada, sobretudo com a fundação, em 1966, do Teatro Popular União e Olho Vivo. Em 1973, passou 90 dias preso no DOI-CODI, por conta do envolvimento contra a ditadura ao advogar na defesa de presos e perseguidos políticos.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

alexandre mate - sobre homem cavalo & sociedade anônima


Em qual limite de fronteira pode ser encontrado o HOMEM CAVALO em condição de SOCIEDADE ANÔNIMA? Qual a saída desses Pégasos aprisionados pelos pés?

Não há dúvida, se se tomar a experiência da Cia. Estável, formada na primeira década de 2000, da importância de que se reveste a Lei de Fomento na cidade de São Paulo. Desde seu projeto inicial: Amigos da Multidão, desenvolvido no Teatro Flávio Império – em Cangaíba, na Zona Leste da cidade –, o Grupo, formado originalmente por estudantes, de curso de formação de atores da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, depura seus espetáculos e amplia as problemáticas em torno das quais os temas são escolhidos. O primeiro espetáculo montado pela Cia., com dramaturgia de Reinaldo Maia, foi Flávio Império – Uma celebração da vida. Posteriormente, Quem casa quer casa de Martins Pena e Auto do circo de Luís Alberto de Abreu, com direção de Renata Zhaneta.

Fundamentado na necessidade de desenvolver um processo de interlocução com a comunidade, no entorno do teatro, os jovens atores da Cia. Estável (penso que, em seu início, todos estavam na faixa dos vinte anos) desenvolveram um significativo conjunto de ações com crianças, adolescentes e adultos. Desse modo, ao mesmo tempo em que os integrantes da Cia. estudavam e treinavam, os achados e conquistas decorrentes desse mergulho estético, comunitário e político eram partilhados com os moradores daquele pequeno, mas populoso rincão da ZL. Atualmente, mesmo distante daquela comunidade, são visíveis as marcas daquela gente toda impregnando as preocupações, os corpos, os interesses, os modos de fazer e as ressignificações estético-sociais de um trabalho que parece buscar um espectro de interlocução que transcende o exclusivamente estético.

Os integrantes da Cia., por intermédio de gestão com o Arsenal da Esperança (instituição ligada ao Serviço Missionário Jovem: www.arsenaldaesperança.org.br), desenvolveram processo de pesquisa com as histórias, sonhos e apreensões dos recolhidos da instituição, por um significativo processo de tempo, e que resultou no Homem cavalo & sociedade anônima: título em cuja formulação se abrigam as mais diversas e significativas metáforas dos desterritorializados.

O espetáculo rigorosamente épico: na escolha e modo de exposição do tema (fábula fragmentada e repleta de solos narrativos), nos expedientes a partir dos quais o espetáculo vai se desenhando no tempo e no espaço e no local de apresentação (Arsenal da Esperança), repleto de homens recolhidos. É impossível assistir ao espetáculo e não perceber os protagonistas daqueles fragmentos na cena e fora, mas tão perto, dela. Normalmente circunspectos, alguns desses homens – cujas próprias histórias lhes são (re)apresentadas – comentam, tentam interferir, mas sem saber talvez que, a despeito de tudo, e parafraseando o poeta maior, no poema Infância, que suas histórias, em processo de revisitação, podem ser mais bonitas que aquela de Robinson Crusoé.

Trata-se de um espetáculo de acertos! O primeiro deles concerne à escolha da dramaturgização das histórias dos homens desterritorializados e em passagem pelo Arsenal da Esperança. Fragmentos apresentados por meio de relatos gravados de alguns desses homens, em solos e em diálogos apresentados pelos atores, nas letras do surpreendente trabalho musical sob direção de Osvaldo Hortencio, pela narrativa representada pelo trabalho de visualidade de Luís Rossi. Entretanto, apesar do acerto da escolha e da apresentação da dramaturgia, é nela, também, que se encontra o maior problema. O espetáculo termina depois da primeira aparição física do Sr. Doutor Patrão (que marca presença durante toda a encenação representado por seu chapéu), apresentado deliciosamente por Maria Carolina Dressler. Como a composição da personagem por Maria é paródica (grande e acertadamente influenciada em uma das lições de Bertolt Brecht) e, também, distante dos maniqueístas chavões do patrão perverso versus o trabalhador oprimido, apresentá-lo ao final não esvazia a crítica de algo como: Olha contra o que você está lutando! Ao contrário, por sua presença sempre simbólica, alegorizando uma ideologia perversa, penso que ao destacá-lo no final, barganhando com Osmundo algumas poucas laranjas, o Grupo confere-lhe papel de protagonista nas disputas com a classe trabalhadora, mas, e sem qualquer idealismo, apresenta-o tomando o ponto de vista crítico dos desterritorializados.

Osmundo (excelente composição de Osvaldo Pinheiro), antes mesmo de o espetáculo começar indaga aos espectadores se alguém pode emprestar-lhe um RG para ele entrar no Arsenal: sem documento ou aquilo que lhe confere identidade mo mundo, ele fica fora! Ao se entrar no arsenal, o prólogo apresenta um painel com logomarcas de infinitos produtos, suspensa acima do painel, uma personagem – espécie de mãe-mercadoria, que fala por intermédio de slogans publicitários – parece anunciar o homem patrocinado: o brasileiro como mais um produto, o homem reificado (coisificação), o homem mercadoria. Então, se ainda podem ser vistos nos centros das grandes cidades os chamados homens-sanduiche, a obra apresenta uma mulher-logomarcada, coriféia do homem-mercadoria. O primeiro homem-mercadoria, em feliz apreensão metafórica de si mesmo – e em embate com seus iguais, antes de ser expulso de seu lugar, que é higienizado pelos agentes da Prefeitura –, afirma: “Gente pobre nasce do sexo, a rica das idéias.”

Em terceiro e último deslocamento, o público, na condição de ocupante do albergue: também um abrigado, ocupa as plataformas dispostas em arena. Vindo das caixas acústicas um abrigado fala da vida, daquilo que lhe foi dado viver. A carroça, puxada pelo homem cavalo ganha a cena (espécie de carroça-palco ou pageant dos artistas populares da Idade Média). O homem cavalo, formando um enorme cortejo de uma sociedade de homens anônimos, desfilará por aquele espaço de troca, cuja indicação no chão de linóleo apresenta a confluência de duas ruas: uma encruzilhada de duas imensas avenidas chamadas Brasil. A carnavalização grotesca canta e insiste: “Quem põe preço em seu suor?” Desse imenso vazio repleto de tantos seres, um pai, delicada, mas contundentemente apresentado por Nei Gomes tenta dialogar, usando o orelhão com filho que já o esqueceu e sua mulher que se casou novamente. A tentativa de sorte em São Paulo, trabalhando como gari, empurrou-o definitivamente ao esquecimento... Na seqüência monologismos de classe média invadem a cena: os filhos da classe média querem fazer chapinha no cabelo, saber claramente o que significa traje esporte chique, um gerente debate-se por ter conseguido cortar apenas 39% dos empregados quando sua missão era cortar 45%, um jovem fumando maconha que quer salvar os pandas do planeta. No geral, o absurdo do relato na caixa de som, os monologismos da classe média, o não saber muito bem de si mesmo caracteriza-se por um coro cuja fala é tartamudeante. Repete-se várias vezes a mesma coisa. Repete-se, por intermédio de textos diversos, a mesma fala orquestrando timbres de uma mesma ideologia de excludência. As letras da música sem tartamudear comentam a gagueira repetitiva.

À essa altura, o espetáculo, naquele espaço, repleto de alusões aos homens cavalos, e estes (nós todos), formando uma coisificada sociedade anônima, passamos a nos olhar na platéia também. Muitos homens de falsas havaianas nos pés. Corpos com a cabeça enterrada e as costas marcadas por um peso agora invisível, mas contundente na vida social, indicam mais facilmente as protagonistas da cena. Quando a Mulher do latão, belissimamente apresentada por Daniela Giampetro apresenta seu solo, muitos na platéia, que conhecem a cena, fazem-se presentes banhados por grande alegria. Um dos recolhidos, no dia em que assisti (domingo, 05 de outubro), anuncia alegremente: “O banho da Maloca”. Cena grotesca de infinda beleza. Cena dialética e de desmascaramento, a Mulher do latão, depois de receber o segundo telefonema do orelhão recebe a notícia do noivo que não vem. Tira o véu e o buquê e deposita-os, com cuidado na sacola da Daslu. Afirma que os homens não prestam mesmo; xinga os homens da platéia, com certo acento caipira, chamando-os de corno e recolhe-se novamente ao seu “mundo interior”: um velho latão que um dia abrigou um produto químico qualquer.



Os “Ed” apresentam-se na próxima cena. Na condição de garis, são incitados, por bizarras técnicas de “otimismo e de otimização”, à produção feliz. Coordenados por um empregado com carteira assinada, os outros quatro garis trabalham “ter-terceirizados”, recebendo um salário mais miserável ainda, do registrado. O empregado divide em quatro o seu trabalho, mas não o seu salário. A perversão da lógica do capital é demonstrada por estratagema de um trabalhador contra o outro, com sofisticado requinte de crueldade. Apesar de haver certo formalismo na seqüência que daí decorre, Maria Carolina e Sandra Santanna, muito bem em cena, apresentam duas personagens cuja consciência se anuncia, mas de modo fragmentado. Embriagado, um dos quatro Eds, maravilhosamente construído por Osvaldo Hortencio, reclama a uma voz do outro lado da linha, em orelhão público, por não ter sido chamado pela agência de contratação de mão de obra. Na próxima intervenção musical há dois versos próximos a: “Eu compasso ferrado no casco/ Sou barulho de uma multidão.” O rumor da multidão, o prenuncio de uma percepção coletiva, recuando no tempo, explica como o Perninha conseguiu um celular. Na primeira cena, Perninha aparece com o celular, agora, nesse flash-back, sabe-se que ele ganhou mesmo por ter feito um favor a um bandido.

Os (des)territorializados despem-se de suas roupas básicas, aquela mesma que os homogeiniza, mas que lhes imprime e lhes confere uma identidade grupal, classista: ainda não em si, ainda não para si. Despidos desses trajes, na condição de espólio de uma vida de suor, Osmundo, na condição de poeta de rua, libera a encruzilhada dessas identidades, que ele nomeia carniça. Osmundo oferece pérolas aos povos!

Andressa Ferrarezi, jovem – entretanto, firme – diretora, orquestra e organiza excelente e sensivelmente os materiais cênicos e humanos do espetáculo. Na obra, percebe-se os toques sensíveis de uma diretora, cuja generosidade permitiu o parto criativo de cada um dos seis maravilhosos atores. Há uma concepção cênica e imagética que resulta do trabalho de cada sujeito em partilha com a direção. Mérito de Andressa e de Luciano Carvalho, bravo escudeiro na dramaturgia, também na assistência à direção e, penso, na provocação das consciências.

Trabalho coletivo com participações distintas dentre as quais é preciso destacar, ainda, a concepção de luz de Erike Busoni: eficiente e repleta de lirismos (sobretudo pelos balões flutuante e tingidos de azul, e os múltiplos acertos na orientação de dramaturgia de Cássio Pires.

Trata-se de um emocionante espetáculo. Difícil lembrar-se dele sem que a emoção conciliada entre o humano e o estético se presentifiquem turvando os olhos: que se açucaram. É isso: com a Estável se tem teatro. Excelente teatro. Teatro que não repete apenas as lições dos mestres, mas, ao tomá-los como parceiros e referências, ultrapassa-os trazendo-os para mais longe, no sentido de entendê-los melhor.

Alexandre Mate. Outubro/novembro de 2008.
Obs. – a leitura crítica aqui apresentada compreende duas idas ao espetáculo e a participação em um debate com a parceira Iná Camargo Costa.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

entrevista















Na íntegra, entrevista concedida por e-mail à Gabriela Mellão (colaboradora da Folha de SP e da Revista Bravo!), por Andressa Ferrarezi e Osvaldo Hortencio - respectivamente diretora e ator e diretor musical do espetáculo Homem cavalo & Sociedade Anônima. As respostas foram dadas separadamente e optamos por publicá-las sem edição.

GABRIELA MELLÃO - Porque vocês decidiram fazer este espetáculo inteiramente em processo colaborativo, sem as habituais participações externas de dramaturgo e diretor? Isso foi resultado de uma evolução natural da Cia. ou o quê?

ANDRESSA FERRAREZI - A Cia. já vinha de um processo colaborativo (O Auto do Circo), mas com artistas convidados (Renata Zhaneta, Luís Alberto de Abreu, Marcelo Milan, Reinaldo Sanches), o processo foi muito bom, mas tínhamos a sensação que terceirizávamos aquilo que podíamos fazer. A direção já havia sido experienciada antes por um dos integrantes, o Nei Gomes, mas a dramaturgia e a direção musical não. Então no primeiro processo do projeto Vagar resolvemos nos capacitar para assumir tais funções e aliamos a interpretação e criação, aulas de direção, musicalização - o Dinho (Osvaldo Hortencio)já tinha uma base musical - e dramaturgia. Não chamo de evolução natural, mas de um processo de maturidade.


OSVALDO HORTENCIO - Nosso ultimo espetáculo, O Auto do Circo, já era um processo colaborativo, porém com outras especificidades. A mais determinante talvez seja justamente esta, de contar com pessoas que, apesar de conhecerem e compreenderem a nossa pesquisa, não tinham uma vivência efetiva do projeto. Isso foi uma dificuldade em vários momentos. A decisão partiu justamente disso, do fato de querermos mais autonomia dos meios de produção. Inclusive para que pudéssemos verticalizar nossa pesquisa de criação em absoluta intervenção com o espaço em que estamos inseridos. Essa é evolução da Cia., que tem buscado reestruturar suas relações de trabalho para que isso interfira na continuidade da pesquisa e criação de nossos trabalhos.
É importante ressaltar que, apesar de termos assumido certas funções neste trabalho, ainda contamos com a ajuda técnica de algumas pessoas que serviam como medida para nos mantermos na linha... Como o Cássio Pires na dramaturgia e do Bakhy na música. Eles tinham a função de manter o nosso olhar atento às questões técnicas especificas nessas áreas.

GM - É a primeira vez que a Cia. transforma a realidade encontrada em um projeto social desenvolvido por vocês em tema de um espetáculo? Como foi o processo de criação no abrigo?

AF - Chegando ao Arsenal da Esperança observamos que a nossa proposta inicial do projeto Vagar não é preciso, que era aliar a pesquisa dentro da casa com estudos sobre nomadismo circense, não era suficiente diante de tudo o que víamos e vivíamos com os acolhidos. A miséria com a qual nos deparamos abriu o buraco sob nossos pés "calçados", a exploração do trabalho fez com que mudássemos, inclusive, as estruturas da própria Cia. O processo de criação foi diferente de tudo o que já havíamos feito antes, a participação e a interferência dos acolhidos foi fundamental para que algumas "fichas" caíssem e que os rumos da pesquisa mudassem de direção.

OH - São mil cento e cinqüenta homens, rostos que mudam sempre. Isso foi muito rico, pois nos forneceu muito material para reflexão. A administração do espaço é muito generosa conosco e nos possibilita bastante liberdade.
Quanto às questões práticas, tivemos experiências diversas. Desde soltar personagens para interagir pelo espaço com os acolhidos, até criar cenas em conjunto com eles, passando por fóruns, debates, e ensaios onde os acolhidos interferiam diretamente nos rumos da criação. Além, é claro, das oficinas. A partir desta experiência, nos recolhíamos em sala pra discutir os conteúdos e tocar a criação adiante.
Alguns de nós até buscaram outras aproximações com a casa, trabalhando como voluntários na portaria ou simplesmente chegando mais cedo para sentar-se na praça e jogar conversa fora com os acolhidos.
Passamos um longo período tentando entender o que é o Arsenal. Nos iludimos várias vezes, caímos em preconceitos e simplificações perigosas, até encararmos a questão de frente. E esta escapa à realidade do Arsenal e invade as ruas, a vida.

GM - Sentiram uma mudança no processo ou no resultado do projeto? Que benefícios esta mudança trouxe ao espetáculo?

AF - A Cia. Estável assumiu que o teatro que faz é político e que não existe teatro que não o seja. O importante foi definir de que lado estamos e para quem e com quem fazemos teatro.

OH - Drásticas. Tivemos que reavaliar opções estéticas que nos acompanhavam nos espetáculos anteriores, a fim de abarcar o conteúdo com o qual estávamos lidando. Isso está impresso no resultado do projeto e no espetáculo, e é justamente o maior benefício: elaborar uma criação teatral afinada com o nosso discurso; fazer uma pesquisa teatral não limitada ao gabinete, teórica por demais e fria, mas viva e em contato com o que é imediato nos nossos dias.



GM - O que mudou no espetáculo em relação à linguagem e estética desenvolvida pela Cia. em seus últimos trabalhos?

AF - Sempre buscamos um teatro com uma linguagem de fácil acesso pairando sobre o popular, o épico e tendo o circo como pano de fundo. Acho que esses elementos estão presentes no espetáculo. A única mudança foi a opção de fragmentar a trama. O tema escolhido não cabia em um roteiro linear, cronologicamente progressivo, porque tratamos das chagas sociais de um longo período histórico que se apresentam hoje. Para tanto, cenas independentes propiciaram a apresentação de um universo social mais amplo.

OH - Há uma diferença de foco. Antes mais ligada à técnica e agora mais ao discurso, ao que se quer dizer. Isso, inclusive, é fruto desta forma de trabalho, onde não há um dramaturgo que te traz a coisa sintetizada. Você é o responsável por dar corpo a determinada questão. Você é o responsável por achar a opção mais adequada às questões técnicas para potencializar a cena. O circo, por exemplo, não é algo tão presente neste trabalho. No entanto, o popular continua sendo uma busca.

GM - Como foi a realidade que vocês encontraram lá, em comparação à encontrada no teatro Flávio Império e como ela influenciou o espetáculo?

AF - Diferente do Flávio Império, no Arsenal percebo que a arte não dá conta de tanta miséria. Lá dentro muitas vezes atrapalhamos os acolhidos que dormem cedo, ouvimos críticas sobre nosso trabalho. Fomos vistos como um grupo de pequenos burgueses querendo fazer "artezinha". Isso tudo fez com que a Cia. Estável atingisse um grau de maturidade e percebesse a importância de estudar aquela realidade mais a fundo, ou melhor, estudar o processo histórico que faz necessário que casas de acolhida existam. Isso influenciou diretamente o espetáculo que, a priori, seria uma peça que falaria sobre nomadismo circense e trecheiros e acabou por retratar uma necessidade do "vagar" não pela aventura, mas pelas faltas.


OH - O projeto Amigos da Multidão aconteceu em parceria com uma população de maioria jovem, que buscava naquele espaço – o teatro Flávio Império – um território de troca artística e reflexão desta arte em relação com a sociedade. Foi uma interferência mútua e muito próxima, cotidianamente.
No Arsenal, as relações são mais frágeis, pois se trata de homens adultos, em geral endurecidos por uma série de faltas – casa, família, trabalho -, e que estão sempre de passagem. O que dificulta uma aproximação mais estreita. No entanto, no Arsenal as experiências destes homens são mais fortes, além de mais numerosas e diversas de nossa realidade. São homens de todos os cantos do Brasil e, também, do mundo.
Quando chegamos, guiados pela metáfora do vagar, descobrimos que teríamos que reavaliar qualquer conceito do que poderia ser um acolhido do Arsenal, porque são muitos e diferentes e mudando o tempo todo. Diferentes inclusive no motivo que os levava a estar como acolhido naquele espaço. Nossa busca, nosso vagar, tornou-se encontrar a razão comum que nos colocava todos com o pé na estrada. O resultado desta busca é o espetáculo, que pretendemos e entendemos como além do Arsenal, nas ruas que andamos, nas casas em que vivemos, nos trabalhos que fazemos, nas relações que construímos.


GM - De atriz do grupo você, Andressa, passou a diretora. Como se deu este processo? É sua estréia na direção?

AF - No ano passado todos experimentamos a direção de cenas, um trabalho feito primeiramente sob coordenação de Georgette Fadel. Depois, cada integrante dirigiu a Cia. durante um mês e ao término desse processo dividimos as funções. Como no começo do ano dirigi um espetáculo juvenil - Rua Florada, sem saída - com a Casa da tia Siré e gostei da experiência, resolvi me candidatar à direção e isso foi acatado pelo coletivo.

OH - Tivemos um longo período de experimentações multifuncionais. Praticamente todos passamos por todas as funções. Em um determinado momento, todos nós nos colocamos ao dispor para algumas delas e tivemos uma conversa bastante franca. Menos pautada nas capacidades e mais nas necessidades do grupo e do espetáculo que estava para nascer.
A Andressa assumir a direção foi um processo muito natural dentro do que nos propúnhamos, assim como outros integrantes assumirem outras funções. Mais do que isso, era necessário. Além disso, ela não deixa de ser atriz dentro deste coletivo. Mas optou por, neste trabalho, ficar apenas como diretora.

GM - Como fazer de um trabalho social uma peça de teatro, privilegiando o resultado artístico?

AF - A Cia. é um grupo de teatro que joga um olhar sensível para a realidade, portanto tudo é matéria prima para a poesia. Somos seres sociais e narramos a história humana.

OH - É uma encruzilhada. Até porque somos ensinados a separar política de estética. Daí temos que correr atrás deste atraso antes de qualquer coisa...
Mas uma medida importante é não separar pesquisa teatral da vida. É ter consciência que somos trabalhadores, cujo ofício é a arte, e não seres privilegiados que elegem um tema para dar sua opinião em cena.
Então o resultado artístico deve ser coerente com o que você vive, percebe, entende do mundo. E se você está realmente disposto a aprofundar a discussão, vai ter que sair do umbigo.


GM - A peça faz uma dura crítica à sociedade, dividindo-a entre ricos alienados e pobres que se deixam explorar. A intenção foi mesmo chacoalhar?

AF - Fizemos intensos estudos sobre história, economia e formação da sociedade e não podemos negar que essa sociedade está dividida em classes e que a exploração da classe trabalhadora existe. E vale ressaltar que os ricos no espetáculo não são apresentados como alienados, o que está em cena é uma classe média que está alheia a toda uma movimentação do entorno. O que podemos chamar de ricos figura na narrativa como o Sr. Doutor Patrão, que não é alienado e sabe o que quer e como quer. Já os pobres não se deixam explorar, eles apenas não têm opção, vendem sua força de trabalho.

OH - No caso deste espetáculo, estudamos, vivemos e criamos para validar nossa opinião: a exploração existe e move muito mais coisas no mundo do que pensamos. E trata-se, sim, de uma dinâmica de classes.

GM - As histórias da peça foram inspiradas na realidade de vocês no abrigo? Conte histórias ouvidas ou testemunhadas que marcaram e foram parar na ficção.

AF - O comum é ouvirmos histórias de homens que não conseguem emprego pelo simples fato de serem albergados ou quando este fato é descoberto pelos patrões eles são dispensados. Além do "salário de fome" (grifo dos moradores) a que são submetidos. Estas e outras questões estão presentes nas cenas de forma genérica, pois são tantos os fatos que nos permitiu uma regra geral.

OH - Nada foi diretamente da realidade para ficção, mas tudo foi material para provocação. E muitas coisas vieram de outras experiências, inclusive de membros do nosso coletivo, relacionadas à exploração.
Mas tem coisas que ficaram muito marcadas para nós, como o processo de higienização do centro, do qual foram vítimas alguns acolhidos do Arsenal, tendo seus pertences molhados ou até recolhidos por agentes da prefeitura. Ou relações de trabalho onde o acolhido não podia revelar onde morava para não perder o emprego, mesmo sendo um trabalho miserável e explorado. Tem também o orelhão da casa, onde já ouvimos várias histórias de famílias separadas, de desespero por emprego ...
No nosso blog tem alguma coisa a respeito disso ...


GM - De que forma se deu a troca entre vocês artistas e os moradores do abrigo. A realidade deles inspirou o espetáculo e vocês, de que forma alteraram a realidade deles? Como os moradores do abrigo reagem à metáfora do homem-animal?

AF - Não alteramos a realidade de 1200 homens e não pretendemos alterar, pois o problema vai além dos portões do Arsenal. Alguns conseguem sair de lá com emprego, alugar um quartinho, mas não são todos. A realidade de moradores de rua ou da classe trabalhadora, que ultrapassa esses portões, está presente nas cenas. Conseguimos levantar esse material através de debates, observações e criações junto com os acolhidos, vale à pena ressaltar que a rotatividade da casa é grande, mas as questões são sempre muito parecidas.
Os homens do Arsenal se identificam com a exploração do Homem Cavalo, há uma concordância indignada. A indignação não vem do fato de serem comparados a um animal, mas sim, da situação retratada, do cotidiano estampado e do mecanismo de exploração desvendado.

OH - Nem sei se é possível eleger algumas formas de troca... ela se deu em tantos e tão diferentes níveis. Às vezes o fato de passarmos com um instrumento musical na frente deles e sermos solicitados para tocar ou ouvir uma música deles é uma troca que age nas nossas rotinas, nos inspira e interfere na criação do espetáculo. Tem as oficinas, onde este espaço é propositalmente criado, mas também os ensaios e intervenções pela Casa...
Às vezes uma frase ouvida, ou alguma história contada. Mas, em geral, essas experiências se validam quando fogem do pitoresco e encontramos uma relação maior com fatos macro sociais.
Nossa expectativa de mudança na realidade deles é a que esperamos em qualquer outro espetáculo para qualquer público: provocar a reflexão. E, a partir daí, agir para transformar. Aceitar a exploração, a animalização do homem, é algo muito mais comum do que pensamos. Nos exploramos, ou incentivamos a exploração o tempo todo. Quem são os empregados que fazem sua vida andar, todo dia? Eles são tratados com dignidade no que se refere às condições básicas de sobrevivência? Alimentação, vestimenta, moradia... Não só os acolhidos se reconhecem como homens-animais como nós também, e os alunos das oficinas, diversos amigos nossos trabalhando em telemarketing ou no comércio, ou mesmo no teatro.
É claro que para eles, os acolhidos, a questão é mais intensa. Os que são chamados de “excluídos” estão absolutamente incluídos neste sistema, com uma função bem clara: ser uma massa desempregada fazendo pressão nos que têm subemprego.
Eu não acordo às 5h da manhã para carregar caminhão em Guarulhos a R$20 a diária, sem o dinheiro da condução. Mas eles sim. E se eles reclamarem ou não quiserem vai ter um monte de gente que vai querer...

GM - Qual a função da música neste espetáculo e de que forma sua criação foi influenciada pela realidade?



OH - A música deste espetáculo foi criada paralelamente à sua dramaturgia. Sua função está ligada a procedimentos épicos de evidenciar as discussões no espetáculo, quer seja pela contradição ou pela via didática.
Tantos os aspectos de linguagem quanto suas letras surgiram de um longo processo de treinamento aliado às discussões sobre o conteúdo da peça. Algumas foram criadas para certas cenas, outras geraram cenas. Mas, como todo o resto neste processo, partiu de constatações da realidade, do Arsenal e da vida.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

festa



tudo no lugar certo


Tudo, tudo no lugar certo (2X)

O jato limpo
O ato digno
Tudo está no lugar certo

Tudo, tudo no lugar certo (2X)

A água fria
O cloro claro
O cheiro cítrico
Tudo está no lugar certo

Tudo, tudo no lugar certo (2X)

O homem aqui
O Estado forte
A cidade limpa!!